quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

As árvores cercam
os trilhos que delimitei
co tanto cuidado.
Se eu tivesse adivinhado,
ainda lá estariam,
ainda viveriam
lá as rochas,
as flores,
as próprias árvores sem cores.
Se não tivesse fugido,
meu rasto encontrariam,
encontrar-me pretenderiam,
escreveriam
cartas repletas de saudade e pó.

Se eu tivesse estabelecido o nó
entre a viagem e a ponte,
o céu que veria no horizonte
seria outro mais brilhante,
mais deslumbrante...

Não fosse eu criar barreiras,
achar terras, erguer bandeiras,
num chão feito somente de águas e areias...!

Se eu tivesse querido o canto das sereias,
os mares invadir-me-iam
e levariam para a distância
os grilhões que arrasto,
a dor, a eterna ânsia...

Quisesse eu não ter sofrido
e nunca teria ouvido
teu choro sumido...

Quisesse ter sido minha
a alma que, no silêncio, definha,
doente, invejosa e mesquinha...!

[Dezembro.2008]

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Cartão de Utente nº 000000000

As salas de espera
são o sítio mais harmonioso e são que já vi.
Brancas, pálidas,
impregnadas de saúde,
cheias de sorrisos de "boa sorte" ou "as suas melhoras",
sorriso amarelos, dentes com cárie.
Tudo devia ter uma sala de espera
para que pudéssemos esperar em tudo,
para que tivéssemos esse tempinho extra,
tempo para nada, apenas para esperar
que alguém, num acto de extrema amabilidade,
chame o nosso nome.

Todas as salas de espera deviam ser
brancas, pálidas,
neutras para que não se pudesse imaginar
nem recriar as formas dos bonecos nas paredes
nem memorizar a música de fundo
que se faz ouvir ainda mais baixa que o pensamento.
Uma sala de espera não pode ser bonita,
não pode distrair-nos do único propósito
que lá temos: esperar.
Esperar, gritar bem alto dentro de nós
que estamos fartos de esperar e sorrir quando, finalmente,
depois de termos perdido, ou antes, dispensado
tanto, tanto tempo esperado,
ouvimos o nosso nome,
por entre ruídos de um microfone
muito português e avariado,
mais velho que a própria criação do microfone.

E é isto: após dias gastos esperando,
dez minutos depois mandam-nos embora,
quase furiosamente,
porque os fizemos perder dez minutos connosco.

Tudo tem uma sala de espera,
uma das grandes, frias e vazias,
com microfones avariados e sistemas lentos:
consultas, escolas, trânsito,
empregos, crenças.
Todas as salas de espera,
onde esperamos que alguém
desesperadamente também necessite de nós,
têm janelas
por onde nada vemos
a não ser o rosto angustiado de cada um
reflectido nos vidros.
"Chamem-me, p'lo amor de Deus..."

E Deus, de ocupado ou de ocioso,
vai esperando que esperemos,
vai lembrando que, sim, rezamos,
e acreditando que ainda acreditamos na esperança.

Mas o Homem é curioso...

Deus, esse que vive na maior das salas de espera,
acabou por ser utente sem número.

Como eu espero que não adoeças!
Se sim, nunca esperes que chamem o Teu nome.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Equinox

Procurando as pedras da calçada,
conseguirei alguma vez ver os passos novos? há passos novos? viste-os?
Sento-me no chão da rua suja,
coberta da lama das castanhas, das folhas fora de moda.
O tempo está fora de moda, já não é o momento.
Se é... bom, não me lembro.

Deve ser Novembro p'ra chover tão intensamente...
sabes da outra gente?
Chegaram a telefonar?
Não chegaram a importar-se connosco.
Que novidade é essa?

Lavei ontem as coisas que me tinhas pedido,
guardei-as na mala , debaixo da mesa,
deitei-me inquieta,
e rezei p'ra que tivesse feito tudo bem.
Não dormi.
Mexi-me, remexi-me, virei as costas
a todos o sonhos,
gritei e expulsei infinitamente
os fantastmas que não deixaram a minha cabeceira.
Sabem tantas canções de cor... !
Guardei tudo, levantei-me e verifiquei a segurança
do escondido.
Estava escondido. Estava seguro.
Deitei-me.

Deitei-me e os gritos despertaram-me. Vi-me,
deitada na cama, como tinha acabado de fazer, dormindo quieta.
Porém, tudo na minha cabeça eram os gritos,
gritos, gritos!
Abri os olhos e, no espelho onde inconscientemente me revia,
a minha boca gritava a mesma loucura dos outros,
de todos os outros à minha volta,
todos surdos, desalmados,
mudos.

Acho que é Novembro. Deve ser.
Ainda não parou de chover.


É verdade: os outros...
chegaram a telefonar-te?